segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Uma viagem analítica pelo expresso diário das contradições realistas

Todos os dias milhares de pessoas cruzam o caminho umas das outras sem darem a menor importância ao que isso pode significar na alma da outra. O impacto que um simples esbarrão ou uma leve trombada pode marcar no caráter e naquele espaço de tempo que se torna infinito ao mais atento dos olhares.

O trem acopla-se a plataforma, abrem-se as portas dos vagões. Mas um deles, naquele dia, tornaria-se especial para setenta pessoas que estavam prestes a vivenciar um abrir de olhos como igual não poderia existir, ou não era-se sabido até então.

Um simples e trabalhador de uma construção liberta-se de toda a vergonha que pode ter e folheia as páginas de sua vida para todos os passageiros mascarados e desinteressados. Ele fala porque tem necessidade. Muito pode-se aprender com o mais simples dos seres humanos. Um que tenha alma pura, que saiba o valor que o trabalho transmiti. Ele sabia muito bem o que falava, em cada frase, cada pausa que era feito ou levemente deixada de lado.
Servente de pedreiro é a sua função braçal e empregadora no dia-a-dia. Experiencia bem, até por demais em alguns casos, como que constrói-se uma base sólida, rija, que provida um alicerce à algo que está para ser construído. Sólido e concreto. "Broco e cimento! Broco e cimento", era o que ele sempre frisava. Eram os elementos que tudo deve ter para prosseguir, para existir. Desde um prédio, até uma família, uma amizade.

Parada para o segundo embarque de passageiros no complexo da realidade.

Um jovem de seus dezoito / dezenove anos adentra o prédio suspenso pelos trilhos e começa a conjecturar sobre uma teoria velha, arcaica, mas que em um momento remoto de um passado ainda vivido e muito presente, teve algum sentido para uma geração nacional européia.
Muitos piamente seguiram isso como tantos no planeta seguem a Bíblia, o Alcorão, o Torá.
O propósito desse rapaz era único e resolvidíssimo: instaurar uma situação caótica e temerosa em todos os ocupantes de cadeiras ainda vazias do carro de liga metálica e vidro que anda em um asfalto de eletricidade.
Palavras de mal gosto, baixo calão, ofensas e impropérios são proferidos durante toda a sua permanência. Sempre corroborava a teoria com uma teoria filósofica que nas mãos de um ditador com dotes de artista e alma maquiavélica, tomou proporções catastófricas e nunca antes imagináveis.
"Übermensch, raça ariana! Pureza! Extermínio! Operação de limpeza começa agora!"
Muito vê-se nessas palavras. Basta contextualizá-las para conotar o significado que cada uma delas têm, perante o que foi começado sessenta e nove anos no passado.
Para ele, todos que não fossem dignos de serem puros, não tivessem a essência, a classe, sem exceção, deveriam ser eliminados. Desde negros, judeus, deficientes, até homossexuais, viados, transsexuais e inválidos. Um jovem guiado por um idealismo senil e fora de época, mas ainda muito seguido por uma vastidão de pessoas.

Outra parada do expresso da verdade. O confronto entre o jovem hitlerista e o ápice de sua raiva e fúria. Um transsexual. Muito vivo e extasiadamente feliz com sua vida.

Somos testados durante todo o tempo. Até mesmo quando não achamos estarmos dentro de um universo avaliativo, percebemos algo que nos traz à realidade mais uma vez e somos atingidos com toda a fúria e crueldade pela vida externa.
Seu nome, Soraya. Vinte e três primaveras transcorridas até agora, e quinze como o que vemos hoje. Uma mulher decidida, coesa e objetiva. O que ela quer, corre e com suor e muito empenho conquista. Ninguém lhe diz que não é possível. Ela simplesmente vai e faz. Sem medo. Sem receio. Sem preocupação. Decidida.
Este seria o mais feliz e trágico dia de sua vida. Mal sabia ela que a 'Operação Limpeza' já havia começado na parada anterior.
Tinha feito todos os preparativos, comprado as alianças. Um vestido feito sob encomenda pela costureira já estava em suas mãos, dentro de um saco preto, representando o que estava por vir.
O que um atraso não faz com a vida de uma pessoa. Ou o que ele faz. Ela não teve tempo de reagir. Não teve trégua. Não teve racionalização. De hora para outra, estava estirada, com seu vestido prata avermelhado, sua bolsa derramada no chão, um par de alianças molhadas pelo fluido ainda quente de seu corpo e uma frase escrita em seus restos mortais: "Começou a Operação Limpeza". A suspeita recaiu sobre seu noivo, com quem ia casar-se assim que saísse do trem.

Outro intervalo para o embarque de um embate de visões confusas, obscuras e turvas.

Vendedor de bala / chocolate / chiclete / salgadinho / água todos vêem, conhecem, em certos casos até ajudam, mas neste cenário, os transeuntes eram meros espectadores de uma briga de opiniões cegas.
Um defendia a supremacia da ração do cacau negro, de casca marrom, que transmutava-se no chocolate ao leite, como conhecemos. O seu algoz defendia e potência e a a teoria nietzscheniana até entrou para ratificar o que era assegurado por seu promotor cego: que o Überchocolate era o branco. O genuíno, o verdadeiro e único doce superior. Repleto de pureza, sabor transcendental e legítimo.
Mas ambos não haviam notado o quanto a cegueira os tinha acobertado a visão, em vista que um era o defensor do produto do outro, e não do que estava sendo vendido por si.
Um acordo foi acertado, mas respeitava uma lei falha e completamente discriminatória à raça negra, ao chocolate de cacau marrom, oprimido, desvalorizado e deixado de lado pela sociedade.
Dessa batalha, ambos tinham os olhos tampados pela justiça, pela balança que iguala o certo e o errado, o réu e a vítima. Um era o outro, e o outro eram eles mesmos naquele vagão, tentando descobrir-se por meio de uma composição açucarada e de imenso sabor.
Suas máscaras eram os olhos e os óculos, o protetor da realidade para a qual fecharam a vista e os sentidos.

Próxima parada: a perda do controle emocional e uma segregação um tanto quanto mistificada pela palavra do Senhor.

Não passava de seus dezessete anos. Loiro, olhos claros. Percebia-se logo de cara que vinha de uma raça nobre. Eletista. Tinha os melhores agrados e prazeres da vida. Desde cedo valorizou o profissional, o seu caminho a ser trilhado. Auto-denominava-se 'Especialista em análise de documentos". Era independente, apenas à primeira vista. Uma faixa de couro segurava-lhe os sentidos e fazia sê-lo calmo, amigável.
Ao notar a falta, descontrolou-se completamente ficando nu em pêlo. Como um dia tinha vindo ao mundo para crescer, viver, procriar e voltar às cinzas da terra. Seus gestos animalescos e furiosos mostravam a falta de noção, uma ausência incrível de auto-controle, de ter um norte. De centro e de lógica.
Rosnava ferozmente. Mas diferente dos outros. Eram rosnados falados, gritados. Berrados. Palavras. Sentenças. Indignação. Raiva. Verdades nuas e cruas. E duras. E sensíveis em seu próprio oposto.
Cansou. Recolheu-se a um canto da caixa de alumínio condicionada pelo ar gelado, colheu sua pele de tecido algodoado e partiu em disparate porta a fora.

No mesmo instante, em uma porta oposta, adentrava um senhor de terno com fino corte e seus dois filhos. Os tons de pele destoavam no ar gélido do box em movimento.
Poucos devem ter notado isto. E também pudera. Mal colocado os pés no vagão tinham, e o pai começou a profetizar sobre o MRSP - Movimento República de São Paulo. Um conglomerado de mentes empenhadas em segregarem o Estado de São Paulo do resto do Brasil.
Em alto e bom tom, para todos os corpos estáticos e respirantes acomodados em suas caixas de plástico, ele proferia palavras de afronta aos migrantes de São Paulo, aos nordestinos e paraíbas. Aos bahianos e indigentes vindos para cá com um único intuito: fazer a vida na tão sonhada e grandiosa capital.
Para ele, tal cenário era inconcebível. E junto à seu pensamento vão e pouco acomedido, seus filhos jogavam no ar cantigas de libertação com o apoio de seu amigo invisível.
Por alguma razão, eles criam que o poderoso e onipresente fosse adepto deste movimento, e para terem com o que conquistar os outros, usavam-no como que parte integrante da revolução paulista.
Uma revolução sem eira e nem beira. Com um fim mais marcante e óbvio que poucos recusavam ver. Um montante de três pessoas tentando mudar uma situação inexistente. Uma segregação que jamais virá a acontecer. Nem neste minuto, nem nas próximas milhares de horas.

Abertura de portas para a personificação da alma do ser humano. Suja, crua e ofensiva. Mas repleta de verdades.

Um corpo é jogado da plataforma cruzando a coluna vertebral do vagão. Este saco de trapos é uma pessoa maltratada por todos que estão ali, ignorando-a da ponta dos pés ao último fio de algodão de sua toca surrada.
Uma indigente como muitos outros que habitam as ruas, as veias da sociedade e o coração da cidade. Mas esta era diferente. Ela tinha a dizer. Contrações de letras que juntas formavam parágrafos cheios de ódio e raiva.
A cólera era visível. Seus olhos vermelhos de chamas liquefeitas previam o que estava por vir. Todas as repúdias que uma pessoa pode ter pelo universo a sua volta. Pelo próximo. Pelas atitudes mesquinhas e tacanhas que era obrigada a vivenciar a cada dia, pelo resto de sua vida.
O limite dessa desconhecida havia atingido o seu ápice. Estava prestar a entrar em erupção há tempos. E este foi o momento infortúnio para tal. Infeliz para os outros que arcaram com sua fúria, seu fronte potente e municiado de letras pesadas e duras. De substantivos e adjetivos denotados por anos de uma experiência cruel de se passar.
Nem uma só alma deu atenção a nobre mendiga, ao cavaleiro branco dos sórdidos e dos oprimidos. Parecem nem ter surtido efeito a rajada de berros e esporros verbais.
Restava-lhe mais uma vez voltar ao mundo. Imundo e frio. Mas antes, um recado foi dado. "Um dia eu volto! Eu sempre volto. Eu estou na minha casa, e mais dia menos dia, vocês vão esbarrar em mim novamente!"

Uma personagem a muito calada neste vagão resolveu manifestar suas idéias e medos. Angústias e ferocidades.

Seu nome, Maria. Não só mais uma das infindáveis Marias deste mundo. Uma Maria Madalena, "daquela que também tem que aguetar as pedras", em suas próprias palavras.
Dezenove anos de idade. Um filho de três anos e a revolta de uma gestação feminina de sete meses em sua barriga era o que carregava. Além de uma sacola e uma mochila em suas costas. O Atlas pode ser uma mulher, afinal elas são as que carregam o mundo em seu ventre, quer os homens queiram ou não.
Corajosa a menina Madalena das Marias. Estava indo visitar o marido / namorado-traficante na cadeia. Estava preso há seis meses. Amicíssimo do dono da boca na Vila Elba. Não bastasse ter que ir visitá-lo acordava cedo para fazer o bolo favorito do companheiro em crime encarcerado e ainda passava um café fresco, que era despejado em uma garrafa térmica para mantê-lo aquecido e saboroso.
Tomava o mesmo trem até o local de baldeação, de lá pegava um ônibus até o presídio. Em meio a essas transições de cenários, estava passiva de ofensas, encoxadas em que a culpa lhe era atribuída sempre. Independente do caso.
Uma mesmo uma Maria. Das mais Madalenas que pisaram na face do planeta e na existência do universo.
Apenas dezenove anos e firme em suas convicções. Fazia das tripas coração para dar o que comer ao filho, e a filha que estava por vir.
Forte. Crua. Vivida. Mulher. Mas ainda uma linda e incompleta menina.

Pausa para entrada de uma vida apressada e corrida.

Mal sentou-se no banco com a roupa de academia suada e grudada ao corpo, puxou da mala sua arma de trabalho, um laptop branco, feito uma vela ainda por escorrer a cera quente.
Seus dedos começaram a fuzilar o teclado incessantemente, como se amanhã fosse tarde demais para recuperar o tempo perdido. E em sua profissão, o tempo não voltaria atrás. Jamais.
Seus diversos celulares tocavem como uma sinfonia descoordenada, mas que em seu fim, tinha uma rítmica única e inigualável, e seu maestro os manuseava com perfeita harmonia e consciência do que fazia.
Sua mãe a cada cinco minutos ligava para importuná-lo por não ter ido de carro, e a resposta era sempre a mesma, em diversas formas: "Mãe, hoje é rodízio do meu carro. Quinta-feira é final sete e oito. A placa do meu carro é oito. Não importa se fosse sete mãe. E eu tivesse dois carros. Sendo sete e oito, daria na mesma!"
E em meios aos berros no aparelho telefônico móvel e os dedos trabalhadores e calejados, ouvia-se bem baixinho um risca de caneta em um post-it amarelo. Alguma cobrança de sua mãe ou anotação de outra ligação que sempre atendia com a mesma saudação: "A Agência sou Eu."
Vida insana. Os olhos demonstravam o cansaço diário e os maus-tratos com o corpo. As bolsas escuras e pesadas sob seus globos oculares indiciavam o esgotamento físico. E a falta de idéia para o conceito perfeito e simétrico corroboravam o escasso de sinapses e interação neural.
Mais dia, menos dia, seu cerébro pararia. Mesmo que ele não quisesse parar. Mesmo que ele não pudesse parar.

As portas se abriram e foi-se em meio a multidão o saco vazio de forças que era o publicitário e sua vasta falta de idéias, dando lugar a um tipo novo, diferente, insano em sua própria normalidade.

Ele chegou como quem nada quer e logo apresentou-se aos já moradores do expresso de personagens: "Vocês não me conhecem? Muito prazer. Meu nome é Ferreira!"
Avistou um lugar vago ao lado de uma moça e começaram a dialogar, jogar conversa fora. Falavam sobre futilidades de uma vida mundana como qualquer outra. Ele perguntou o que a afligia e logo na terceira hipótese já 'adivinhou'. Dinheiro. O mal e a sorte dos homens.
Uma sacola era tudo o que tinha em suas mãos. Dentro do casaco recortado de fotos de revistas de fofoca e atualiadades, tinha o corpo esguio, atlético e imponente de alguém que um dia fora um filho, um amigo, um sobrinho de alguém. E agora, era mais um entre a multidão.
O problema da jovem senhorita seria resolvido com o que ele tinha dentro de sua sacola, era o que dizia Ferreira. Que, entre uma proza e outra, continuava a apresentar-se, agora, somente a ela. "Ainda não me conhece? Prazer. Meu nome é Ferreira!"
Sua loucura era o que fazia seus pés ficarem fincados ao chão. À uma base sólida. Um terreno firme onde ele tinha apoio, tinha uma vaga idéia de o que seria sustentação.
Em meio a isso, o seu distúrbio esquizofrênico não foi notado por todos. Somente os olhos mais atentos notavam suas nuances, suas mudanças repentinas de comportamento. Sua distinção de realidade sumia e logo vinha ele mais uma vez para a introdução de si mesmo: " Ainda não me conhecem? Prazer. Meu nome é Ferreira!"
Foi com essa última apresentação que ele deixou a sua efêmera estadia neste trem.

Em meio a tantos personagens e tipos alucinantes, um professor incursiona o vagão de plástico e metal com palavras duras, mas simples. Em questão de segundos, que para os presentes pareceram horas, discursa sobre o que pode vir a ser o catalizador do fim de uma era.
"O simples apertar de um botão e a ignição do Grande Colisor de Hádron pode dar início a uma reação molecular que acelera as partículas a tal velocidade que um buraco negro pode surgir e tragar tudo e todos" , disse o professor.
Mas ele reflete e presenteia a todos com uma reflexão maravilhosa. "Ao invés de olharmos para um buraco negro e vermos a destruição, porque não olharmos para um buraco de luz? Uma iluminação que acolherá a todos e então entenderemos coisas até então deixadas de lado."
"E em meio a esse vislumbre iluminista, nós pensarmos e na próxima eleição, não votarmos?"

Assim como entrou, saiu. Falante e galante, mas calado e cisudo.

Um vagão como este, as pessoas andam todos os dias, quisá durante anos. Mas são poucos os que arriscam observar e refletir sobre todas as situações impostas pela vida e pela convivência com as outras pessoas que transitam os mesmos lugares.
Nem todos buscam compreensão. Simplesmente querem viver sua pífia e reles vida, sem preocupações, fora as suas.
Mas existem aqueles que em meio a tempestade e as nebulosas que o cotidiano aflinge, resolvem aceitar o que está diante de seus olhos e exercitar a mente para chegar à conclusões. Para gerar discussões nas rodas de amigos, em casa com os familiares. No ambiente de trabalho, junto aos colegas profissionais.

Existem pessoas que, sim, adquirem um passe para o Expresso das Contradições, e usufruem da viagem atemporal e filosófica.


Uma interpretação da peça "Mauá-Pirituba, O Expresso das Contradições"

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