segunda-feira, 13 de outubro de 2008

As quatro estrelas de duas constelações

Completara dezenove anos haviam três meses. O mundo inteiro diante o seu rosto e quase duas décadas trilhadas. Anos repletos de turbulência, desavenças, crenças perdidas, amizades adquiridas, outras distanciadas.

Não parara para fazer um balancete de sua vida até aquele momento. Estava cursando o que gostava e tinha prazer em fazer, publicidade e propaganda. Era uma faculdade de renome, uma infraestrutura bem organizada e que dava à ele e todos os outros alunos o que era necessário em termos teóricos e práticos, para aprenderem sem deixar lacunas.

Era o que pensava. Muito ainda estava por vir, e mal ele sabia disso.

Aos dezessete, riscara seu corpo pela primeira vez com a tinta eterna, em termos terminológicos, e não práticos. O traço era oriental, um kanji. A junção de dois ideogramas formando um único e absoluto emblema. O significado: eternidade.
Mais simbólico que isso era impossível. Tatuagem é eterna. infinita, carregada para onde quer que vá. Um transfer agulhado por uma máquina nervosa e pulsante, desferindo socos de coloração com uma velocidade impressionante de ver-se.

A partir daquele dia, sabia que a sensação de coloração na pele, as beliscadas da agulha em suas costas e a dor interminável de uma hora e meia de agulha dinâmica seria o seu dogma. Uma filosofia. Um rito. Um mito de passagem, de transcendência. A libertação da alma e a quebra de algemas de seu corpo, dando lugar a uma identidade nova. A verdadeira faceta daquilo que sempre fora. E agora era revelado ao mundo.

Dois anos se passaram sem o corpo ser traçado. As únicas linhas que marcaram ele foram as da idade, as olheiras que acentuavam o seu cansaço e os riscos de caneta que ficavam em suas mãos, seus braços, anotações de livros, notas de telefones e lembretes de pensamento pinçados.

Resolveu que estava na hora de libertar seu corpo mais uma vez do pedaço de papel que definia a sua personalidade e restringia a sua ascenção.

Sempre fora aficcionado por estrelas. Seu brilho intenso e ofuscante. O piscar, como se fossem olhos enxergandos todos à milhões de anos luz no universo. Mutias das que via já não existiam mais, em vista que estavam mortas e só então conseguia observá-las. Sua luz demorara anos para chegar aos seus olhos e cintilá-los com um leve amanso na alma e um toque nos cabelos.

Decidiu que três estrelas seriam rabiscadas e pintadas em suas costas, e a maior delas guardaria a eternidade bem no meio, como um presente precioso que estaria recebendo logo após a chegada. Um símbolo de inestimável carinho e ternura.

Esteticamente bonita. Simetricamente perfeita. Alinhada ao meio das costas, suas vértebras ao centro das estrelas. Nunca brilharam. Mas ele as sente a cada momento. Intrísecas ao seu corpo, cintilantes e eternas em sua carne. Acalmando a sua alma. Apenas três. Nenhuma a mais, nenhuma a menos. As três que fecham a sua carapaça inteiramente. Somente seus traços. Suas linhas. Sem preenchimento. Sua pele exposta acerca de cada uma delas. As marcas da vida, do tempo, da idade, das noites bem dormidas e dos dias mal vividos.

Tudo tinha o seu devido significado. Em algumas vezes perdia o controle de seu cérebro, sua mente acelerava freneticamente, desvairadamente. Pensamentos ininterruptos, desconexos, a-cronológicos. Mas da mesma maneira que perdia, recobrava e em minutos o auto-controle estava operante uma vez mais.

Eram as estrelas. Suas guarda-costas da alma. Da mente. Do dia-a-dia. Das situações corriqueiras. Dos cenários improváveis e inimagináveis. Presentes em sua totalidade e unicidade. Cada uma delas. As três em forma reta. Um princípio de constelação. O indício de algo grande, transformador. Revelador. Único.

Os anos foram passando. Os dias transcorrendo sua vida, seus olhos, seus pensamentos, sua mente. As semanas de vento inquietante durante seu sono, os dias de chuva que apareciam de surpresa. O sol escaldante dos finais de semana de fim de ano. Na praia. Na rua. Na calçada. No carro. Na areia. No chuveiro.

As estrelas firmes e fortes, não escorriam com a água. Não desfaziam-se com as unhas que o arranhavam. Nem um risco elas tinham. A vida não as maltratava. Era impossível. Inviável. Indelével.

Mas um vão existia entre ele e ele mesmo. Entre sua alma e seu espírito. Seu cérebro e as conexões nervosas dos pensamentos inquietos.

Aos poucos, tudo foi se encaixando. Sendo desvendado perante seus globos oculares, cansados de tanto correr as linhas dos livros, as páginas de internet, as placas nas ruas, os nomes das pessoas, os endereços das festas.

Já estava traçado a mais tempo do que fora imaginado. Ele sabia. O caso era o tempo passar. Simples assim. Dê tempo ao tempo. Filosofia pessoal de sua vida. Outro dogma. Vivo e vivenciado sempre. O tempo cura e cicratiza tudo. Menos o que você quer pulsante e em carne viva, vertendo sangue e transmitindo vida. O caos do corpo humano. O fluxo do elixir da vida.

O tempo transcorreu exatamente como previra.

Agora sentia-se completo. Sente-se completo. Parte integrante de uma revolução. De algo maior do que sua compreensão tem conhecimento.

Sente-se vivo. Mais do ontem e menos do que amanhã.

Aproveita todos os momentos, todos os segundos.

Aos olhos dos outros parece loucura o que faz. Os riscos que corre. As situações em que se mete. As horas de sono bem-acordadas-mal-dormidas. As incontáveis latas de energéticos para tirar-lhe o sono durante as horas de trabalho e logo pela manhã.

Não importa-se com nada disso. Sabe muito bem o que está se passando em sua vida. Tem seus valores, seus métodos nada ortodoxos e religiosos. Não permite que nada afete as suas responsabilidades, o seu desempenho.

O átimo de suas ações tem um propósito. Um objetivo. Um foco único e perfeitamente especificado. Declarado à todos que queiram ler, ouvir, saber, conhecer, divulgar, divagar, repassar, informar, comunicar.

Ele agora tem duas constelações.

Uma à suas costas. Três estrelas focas e cintilantes.

E outra à sua frente, de uma só estrela. Brilhante e viva. Pulsante e tranquilizadora. Maravilhosa e perfeita.

E agora só falta declararem o feriado das constelações para ele enlouquecer.

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