- vertigem postural paroxística benigna. branco. um branco incandescente. sequer chegou a ferir os olhos, mas foi tudo o que consegui vislumbrar depois que o doutor, pHD na puta-que-o-pariu, proferiu aquelas 4 palavras que soaram como o gongo no último round de uma luta de boxe pelo título mundial dos pesos pesados. contra o Evander Holifield. imagina. parecia o fim. descobrir um troço desses já com os cabelos brancos, com rugas mais que aparentes nas laterais dos olhos e alguns vincos de preocupação na testa não é lá muito inspirador para quem ainda crer ter uns bons 10 anos de vida pela frente. veja bem; digo que são uns bons 10 anos porque minha vida não foi das mais tranquilas e sorrateiras que o mundo pôde assistir da arquibancada da vida. foi cheia de altos e baixos, e com várias bebedeiras e uma infinidade de carreiras inaladas vias aéreas adentro. com uns poucos desvios pela laringe aqui e ali. mas como diz o ditame: "alegria de pobre dura pouco", levei a surra facial daquelas 4 palavras que mais pareciam um eufemismo para: sua vida chegou ao fim do poço e vai ser uma desgraça atrás da outra a partir de agora, senhor - da melhor maneira possível. engoli seco, como se tivesse entornado uma garrafa d'água com gás, cheio de areia e cascalho. fazer o quê? se tem que ser assim, assim será então. o doutor, pHD em puta-que-o-pariu começou a explicar o que significava aquele provérbio médico inexplicável para um leigo na seara da medicina. apenas assimilava trechos daquele monológo de quem parecia estar apreciando cada segundo do discurso pomposo. "característica particular dos"; "incapacidade de equilíbrio…"; "aparente perda da função…". cada pausa que ele fazia antes de prosseguir a explicação me deixava mais preocupado e aumentava, compulsivamente, a minha sudorese sob os suvaco. - palavra com grafia indefinida complica a vida de qualquer escritor. uns chamam de subaco. outros de sovaco. a alcunha feminina é "axila". muito mais conveniente e elegante para as mulheres existir uma palavra específica para designar a região que fica abaixo dos braços, contígua aos seios, que, abençoadamente, a maioria delas tem a dignidade e senso de higiene de depilar. - aquela consulta começou a se alongar. demasiadamente. mutismo seletivo. repentinamente, fiquei estático. meus olhos, claramente, pareciam vazios e pude perceber o semblante de preocupação do homem de jaleco sentado à minha frente, atrás da grande mesa de mogno com a fotografia da família que ele tentava administrar entre as extensas jornadas de trabalho com raros dias de folga, nos quais, concluindo rapidamente pelos certificados e diplomas pendurados na parede, terminava algum artigo para umas das várias publicações focadas em neurologia. a balança da vida é implacável, no caso dele, com os entes queridos que não sabiam onde estavam se enfiando, conscienciosamente ou por juras de amor que acreditavam, seriam cumpridas independente do rumo que a vida de ambos tomasse. eu continuava quieto. a consulta era algo de rotina, uma que havia abandonado alguns anos antes quando inalei a primeira carreira na pia do banheiro de uma padaria da alta sociedade na esquina da Consolação com a Alameda Itu. sempre tive receio de pronto socorro ou posto de atendimento, então desde cedo me acostumei a pagar um plano de saúde que esperava sempre não usar. esse é o tipo de coisa que é investimento perpétuo, e você espera não ter que sacar a bolada em nenhum momento da vida. as dores de cabeça começaram a aumentar de uns meses para cá, a visão embaralhava quando focava fixamente um determinado ponto e mudava o campo de visão rapidamente. sentia uma pressão forte, como no avião na decolagem, quando os ouvidos tapam. mesmo parado ou deitado, aquela sensação da bebedeira, quando se fecha os olhos e todo o resto do mundo parece que roda, menos você, e isso vinha me preocupando e causando um desconforto sem igual. foi por isso que vim até aqui. não antes de abrir o caderno do segurado do meu plano de saúde e buscar no índice a página onde encontraria a divisão "Neurologia" das especialidades médicas. sorte a minha foi ter um próximo ao apartamento que vivo atualmente. cheguei cinco minutos atrasado, mas a recepcionista disse que o doutor estava terminando uma consulta, então não preocupei muito com o atraso, mesmo que mínimo. escolhi uma das revistas na mesa de centro de metal usinado cortado à perfeição. impressionante a tecnologia de fabricação de móveis. mais impressionante ainda eram as pernas da recepcionista. que espetáculo. esbelta, corpo atlético. cabelo chanel castanho escuro. calçava um escarpian preto, saia cinza e uma camisa canelada branca justa às suas curvas. às revistas. FOCO. folheei rapidamente qualquer revista semanal de baixo conteúdo e alto teor político intragável para passar o tempo. destruição. Coréia bombardeando Coréia. algum escândalo político envolvendo um zé qualquer que enfiou dinheiro embaixo da peruca. ao invés de "Brasil. País rico é país sem pobreza." deveria ser "Brasil. O país da corrupção escancarada." nem reparei quando o último paciente saiu do consultório, tanto que fui avisado pela recepcionista com um sucinto: "Senhor, pode entrar.", tão baixo que quase não identifiquei que som era aquele. e, depois de 15 minutos de consulta, estou ponto sob a lente microscópica da minha mente todas as besteiras, sacanagens, pilantragens, conquistas, perdas, noites passadas em claro, manhãs perdidas com a ressaca, tardes improdutivas, finais de semana ao livre, viagens para a Tailândia, França, Bali, China, Nova Zelândia, Zimbábue, Êgito, Finlândia. tenho pouco que reclamar das coisas dessa vida. muito pouco mesmo. claro que sempre esperasse ter tempo para mais uma dose de Blue Label - caubói, por favor. - mas fazer o quê. se este for meu fim, aceitarei-o com a dignidade de um samurai que perde seu mestre na batalha e realiza o harakiri. "aqui está". aquela voz ecoou misticamente pela sala, como se vinda dos céus ou da mais profunda tumba faraônica. saí do transe. minha visão saiu do estado aquoso esbranquiçado que se encontrava e recobrei a consciência. a mão do médico repousava suavemente sobre uma folha branca, com sua assinatura e um carimbo. arrastei-a pela mesa com o dedo indicador e o médio, trazendo-a próximo da borda da mesa e li o conteúdo da maldita prescrição. "tome 2 comprimidos por dia. um ao acordar. outro antes de dormir. não exceda em suas tarefas diárias e tente evitar qualquer trabalho braçal e, de preferência, situações que elevem seu nível de estresse, ok?". - sem problema, doutor. muito obrigado. - dobrei a receita ao meio e guardei junto com minha carteira, no bolso da calça. levantei, cumprimentei cordialmente o senhor de jaleco branco cheio de condecorações na parede, inclusive do exército brasileiro e da associação 'Médicos sem Fronteiras". ele devia se achar um ser mitológico, com todas aquelas honrarias e baboseiras egocêntricas funjadas em prata e ouro. abre a porta e saí. "deixe-a entreaberta." atendi ao pedido. perguntei à recepcionista onde era o banheiro. "no corredor ao lado do bebedouro, segundo porta à direita.". me dirigi até lá. a primeira porta era o banheiro exclusivo para portadores de necessidades especiais. como acredito que cada um tem o merecido respeito e prezo pela civilidade, não transgredi nenhuma regra. abri a 2ª porta à direita. ótimo. uma pia e um vaso sanitário. banheiros deveriam ser todos assim. exclusivos. tranquei a porta atrás de mim. saquei um tubo de ensaio do bolso da calça, despejei um pouco do pó branco na pia de granito. abri a carteira, retirei o Amex do seu repouso, alinhei aquela carreira perfeita, milimetricamente fina e suficientemente extensa para comemorar o fim do susto que acabara de levar. enrolei uma nota de cinquenta reais com magistral habilidade. cheirei como se fosse a última carreira de cocaína antes de dar entrada na clínica de reabilitação só para lembrar como o transe é fantástico. limpei o nariz para não deixar vestígios. nada na pia. guardei a cédula e o cartão na carteira e saí do banheiro. me despedi da recepcionista e segui para o elevador. no saguão, depositei o crachá na cancela e rumei à porta de saída. o sol me cegou momentaneamente. tirei meu óculos de seu repouso na gola da minha camiseta e o maço de cigarro do bolso da jaqueta de couro junto com a caixa de fósforo. antiquado, mas sou fascinado pelo cheiro da pólvora. detalhes da vida. acendi o cigarro e dei uma longa tragada. nada como o primeiro cigarro depois da primeira carreira do dia.
quarta-feira, 23 de maio de 2012
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