31 de Dezembro de 2009. O último dia de um outro ano, o princípio de um novo começo para todas as almas perambulantes e, provavelmente, o último dia da Só Videolocadora.
Ainda fechada, suas luzes apagadas à escutar o som da chuva ao lado de fora, as gotas escorrem pelos vidros que exibem a penumbra na qual ela se encontra, ao tempo que aguarda a chegada de seu proprietário, Zé Luis, Quarenta anos, experiente cinéfilo, admirador e aspirador da 7ª Arte.
Ofegante, embainha a chave e insere na fechadura da porta. Dois giros para abrir. Guarda-chuva pingante em punho, coloca-o no chão de sua loja de sonhos e vira-se para a rua, onde o ir e vir dos carros permacece frenético, mesmo quando veem Jezabel, sua ajudante e vendedora das pipocas que ficam na entrada da locadora, caminha sem rumo pela rua.
Com gritos desesperadores, a tentativa de alerta faz-se pouco útil em meio ao som ensurdecedor das buzinas e da aceleração dos chassis rodantes. Por muito pouco ela sai ilesa de sua vagação, e aterrisa sã e salva na calçada porto-seguro do estabelecimento.
Finalmente, o proprietário adentra sua fábrica de sorrisos e lágrimas, pronto para o que pode ser o último dia de existência e funcionamento da Só Videolocadora.
Como de costume e feitio, Zé Luis cumprimenta os seus preciosos bens, em uma rotina diária, feita igualmente desde que assumiu a loja após a morte de seu pai. Com uma alegria não vista até então, tira de sua sacola preta arejada duas caixas pretas, e dirigindo-se ao pôster de Alfred, o Hitchcook, diz:
- Consegui duas cópias de seus clássicos. Agora, para a coleção, teremos Os Pássaros e Psicose. Elas só necessitam de um toque de carinho e limpeza, e ficarão prontas para uso, novamente.
As fitas foram encontradas na lixeira. O como foram parar lá é uma história longa, que em suma, diz respeito à um triângulo amoroso que, em específico e em semelhança a tantos outros, foi descoberto e para a infelicidade dos VHS, eles sofreram a pior. Mas, enfim, foram acolhidos e tem agora um lar digno e são reconhecidos e valorizados pelo que são para a história do cinema.
Jezabel, a ajudante e vendedora de pipoca, aquela que por um triz não foi levada desta para uma melhor, é uma jovem na casa de seus Dezoito anos e temente à Deus. Crê piamente na palavra e segue seus instintos baseada nos sermões do fiel Pastor da Igreja que frequenta. Como uma ovelha, segue o rebanho e não pretende ser desgarrada dos outros mamíferos e perder-se na vida, e por conta da falta de ideologias e auto-conhecimento, Zé Luis discorda veementemente do modo de vida que a jovem-serva, Jezabel, assumi para si.
Após um de seus discursos morais, agnóstico como diz ser e assumido como poucos ousam de ser, sobe em seu banquinho, tirando detrás do balcão, e faz uma proposta para Deus:
- Não acredito que Deus existe, mas em todos os casos, não custa tentar. Olha, não sou ateu! Eu creio em algo, mas não a ponto de ser católico ou fiel de qualquer outra religião, por conta, sou agnóstico. Agora, o negócio é o seguinte, se você conseguir com que a pobre da Jezabel se encontre e tome o poder de sua vida, eu prometo virar católico, e crer em sua palavra e em sua existência.
A promessa estava feita e mal sabia Zé Luis que suas palavras seriam tomadas por honra, ao final daquele mesmo dia.
A chuva, antes copiosa, começa a diminuir seu ritmo e intensidade, ao passo que em momentos só restarão as poças, esparsas e aleatoriamente distribuídas em cada uma das fracturas das calçadas e as gotas translúcidas nos vidros de areia dos carros, das vitrines, no plástico dos toldos, nos telhados de lajota e nas caixas de papelão dos subexistenciados desprovidos de renda.
Dentro do refúgio dos pensamentos, Zé Luis repousa-se em sua poltrona e divaga sobre a vida, as circunstâncias impostas pelo tempo e a batalha que cada um trava para existir pacatamente nesta megalópe onde Nessum Dorma.
O tempo, para Zé Luis, trouxe as incertezas, a maior e pior delas é a permanência de sua videolocadora, pela qual tanto apreço tem. É o seu maior bem e sua alcova da vida cruel e visceral do mundo exterior. E, ao dia 31 de Dezembro de 2009, ela pode chegar ao fim, junto com o seu recanto de falsa segurança.
Culpado também pela evolução, o tempo agora é o inimigo não só do frágil proprietário, mas como ele mesmo propaga, de todos os humanos e seres cientes. Fadado ao fracasso, como foi previsto pela sua sobrinha, anos antes em uma visita à sua já mal conhecida locadora, era uma questão de tempo para que a tecnologia consumasse por completo a falência da arte dos VHS. Saem os VHS's e entram os DVD's. Os LP's tornam-se relíquias, e dão espaço aos CD's, que para seu infortúnio, em pouco tempo seria substituído pelos arquivos digitalizados, as infâmes extensões '.mp3'.
Os Tempos Modernos anunciados por Charlie Chaplin em um de seus maiores marcos e sucessos de carreira, anunciava não só o avanço das máquinas sobre os homens, mas a obscuridade que elas próprias colocariam sobre si mesmas. O avanço se tornou irrefreável à partir da Revolução Industrial do Século XIX, e era meramente óbvio que, em algum ponto da cronológica linha, a própria Revolução precisaria de uma outra Revolução, mas desta vez, seria a Revolução Humana, para tormar-se o controle sobre as peças e seres inanimados que agora dominam a face do Azul Globo.
Para Zé, a pressa que os homens tem em superar o tempo,realizar multiplas tarefas acabar por distanciar o humano do estado 'ser-humano', por sua vez faz que os sentimentos de afeição pelo próximo sejam quase que extintos de sua memória e conhecimento. Nesse instante, ele põe à prova a sua teoria e, para que todos ouçam, conclama:
- Ei, você! Eu te amo! (pausa para aceitação)E o que eu ganha com isso?
- Você aí. É, você mesmo! Cara, você é um puta brother! (outro silêncio aceitativo) E o que me vale disso?
Descontente com o rumo que a humanidade toma, e desacreditado em quisá encontrar um pífio esquadro de luz no fim do longo túnel da vida, recordou do tempo em que seu pai, o primogênito dono da Só Videolocadora ainda estava vivo.
As horas ao lado do pai, o amante mais caloroso da arte, que conheceu em sua vida, ensinou-lhe tudo que foi possível, tanto que ao morrer do patriarca da família, o sucessor foi ninguém menos que o fiel Pancho Villa de seu Dom Quixote, Zé Luis. Recordou-se do dia da morte do pai. Saiu correndo de casa com rumo certo, e ao entrar pela porta do shopping de frames, viu a silhueta de seu pai, sentado à mesma poltrona que ainda existe na casa. Muito seu pai lhe ensinou, mas um detalhe específico ficou incrustado em sua mente.
Seu pai levantou da poída mobília, apontou para o pôster de Gilda, protagonizado por uma loura e disse:
- Filho mio, aprenda a amar à esta mulher, porque ella é tua madre, ãh! Ella in verità, é tua madre! E seu nome: Rita Hayworth! Ãh! Rrrrita Hayworth!
Depois deste dia, nunca mais viu seu pai, e seu legado, uma caixa frágil e agora coberta de pó, só foi descoberta muito tempo depois pela sua sobrinha, uma menina atarracada no auge de seus Doze anos de vivência, que havia acabado de discursar sobre o fadado fracasso da Só Videolocadora, e da vida quase que execrável dos VHS's. O pacote de papelão continha os mais clássicos filmes do cinema italiano. E em nenhuma hipótese, o já decadente Zé Luis cogitou a chance de deslacrá-lo e espiar seu conteúdo, até aquele exato momento de indagação de sua conjugê. A inconformidade nunca foi superada, e até hoje, a redenção por este fatídico erro é carregada por suas costas e está fixa em sua mente. Percebe-se isso em suas íris, brilhantes, que relatam a história do pai e da videolocadora.
O interessante é ver como o dia ainda reservava diversas surpresas, dos mais intrigantes e inexplicáveis tipos.
Jezabel, sua ajudante, assim como a do Livro Sagrado, reconheceu o seu Acabe, e tornou-se, de um instante em que estava jogada pelas ruas, peladas, causando alvoroço na populução transeunte da Praça da Sé, mulher e dono do Eternamente Pagu, um prostíbulo localizado nos arredores da Praça Roosevelt com a Rua Augusta.
- É Jezabel, até você encontrou o seu Acabe. E vai ser DONA de um puteiro. Quem diria, né? Felicidades! E muita sorte!
Lá estava novamente o dono com seus pés suspensos pelo banquinho, dando voz para Deus ouvi-lo mais uma vez:
- Mandou bem, hein seu Deus? Gostei de ver. Agora acredito que o Senhor existe. Vou honrar com a minha palavra. Tem a minha crença agora.
Mas o final do ano não poderia deixar a ironia de lado e ainda resguardava outra supresa, essa, a mais desagradável que alguém poderia receber, no dia mais especial do ano, o dia do Nascimento do Senhor, o famoso, Natal.
Vislumbrou pela janela o espelhado vidro de um carro importado, imponente e exclamou:
- É a Bia, minha ex-mulher. Caralho, é a Bia, e ela tá no carro do subprefeito! PUTA QUE PARIU!
Sim. Era o sub-prefeito, que residia na sub-casa, bancada pela sub-prefeitura, e sua sub-ex-mulher, que morava na sub-casa bancada pela sub-prefeitura, que tinha como patrono, o sub-prefeito, que, ao que tudo indicava, iria tomar-lhe a locadora.
Agora faltam Dez Minutos para o final do ano, e o início de outros Trezentos e Sessenta e Cinco dias de oportunidade para limpar a poeira do ano que passou, encaixotar o que não servir e continuar a vida, com espírito renovado. Com novos anseios, objetivos, angústias, medos.
Para Zé Luis, que agora estava encolhido na poltrona, que um dia abrigou seu pai, não restava nada pelo qual lutar valesse a pena. Não teria mais motivos para abandonar a cama pela manhã e deixar o suor escorrer de sua testa ao longo do dia. Não habitava em si a chama do ânimo, tão necessária nesta hora de enorme pesar e incalculável luto.
Sua locadora, a Só Videolocadora, deixou de ter um dono, para agora, ser Só.
E Zé Luis, deixou de ser dono, para ser Só mais um entre tantos.
A redenção não foi alcançada.
E seus sonhos, confiscados.
Uma interpretação da peça "O Dono da Videolocadora"
sexta-feira, 27 de março de 2009
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