quinta-feira, 9 de abril de 2009

A batalha de Seu Tonho

E mais uma vez ela veio.

Na surdina, se proliferando aos poucos. Imperceptível, nociva.

No momento exato, sabe atacar e muitas vezes debilita você da ponta dos dedos do pé até a última sinapse de pensamentos rápidos e automáticos.

Fazia tempo que Tonho não sentia algo deste tipo.

Suas forças não existiam. Quando tentava levantar-se da cama para mais um dia de labuta, pensava somente em se agasalhar com os 3 edredons e as 2 cobertas. Parecia que tinha sido mumificado, de tão imóvel que permancia em sua cama.

Juntou o máximo de forças que pôde, e como se fosse um animal grunhindo, conseguiu chamar sua mulher:

- Darcy! Ô Darcy! Venha cá um tantico, venha.

Da cozinha, os sons de Tonho eram impossíveis de serem classificados como chamados. Aos ouvidos de Darcy pareciam mais chiados assobiados, que propriamente uma clamação que necessitava ser atendida.

- Diacho de homi que não faz nada sozinho. Que foi dessa vez Tonho? Tá me azucrinando porque?

Sem ter de onde tirar qualquer resquício de força muscular, apenas revirou-se na cama e deixou estar por isso mesmo, reclamando:

- Pô, não custava nada àquela lazarenta vir. Deixe pra ver só. Vai ter volta. Já dizia meu finado pai: - Aqui se faz, aqui se paga.

De repente, tinha dormido novamente.

A temperatura de seu corpo lembrava uma montanha-russa, de tantas subidas e descidas que tinha, e em questão de minutos, estagnou, como se o carrinho tivesse travado nos trilhos. Do alto de sua quentura, suor eruptava por todos os seus poros. Os braços languidos e bronzeados pelo trabalho na lavoura estavam brilhantes e refletiam a luz da lamparina, recostada no criado-mudo, ao lado da cama.

Sua testa, aos olhos de quem o visse, lembraria uma cachoeira, com sua queda d'água torrencial e ininterrupta. Seus cabelos estavam enxarcados, como se a instantes, tivesse saído de um banho fervilhando e deitado na cama, sem nem ao menos secado a cabeleira.

Durante a noite, contorceu-se de tanto frio que sentia, mesmo estando todas as janelas fechadas, inclusive a porta do quarto.

Gemidos assustadores esgueiravam por entre o friso pífio que existia entre a porta e a terra batida, que fazia a vez de chão da casa do Seu Tonho e Dona Darcy.

Ninguém poderia suspeitar o que viria a seguir, muito menos o pobre casal, que ainda vivia na Idade da Pedra, no quesito tecnologia. A casa, construída às próprias mãos pelo seu Tonho, não possuía energia elétrica e o fogão de 2 bocas que tinham como posse, estacionado na cozinha, era, ainda, movido à lenha.

O posto de saúde mais próximo ficava aproximadamente à uns 20km da casa e Tonho não tinha sequer condições físicas para levantar de sua cama, trocar de roupa e calçar suas sandálais de couro para, aí sim, caminhar as duas dezenas de quilômetros até o porto seguro.

Então, Tonho conveceu sua fidedigna esposa a buscar ajuda para ele.

- Vai Darcy. Não tenho forças pra caminhar. Não custa nada pra você í até lá e chamar um dotôr. Vai logo, muié. Pelo Amor de Deus.

Darcy, muito calma, retrucou:

- De que vai adiantar? O dotôr vem e atende ocê, e aí fazêmo o quê? Não temos dinheiro pra pagá os remédiu.

Tonho levantou o máximo que conseguiu, soergueu o braço transpirante e apontou à sua mulher, e com uma tentativa de grito, respondeu:

- Vai logo!!! Aarrrrrggghhh!!! Vai, sua véia louca! Eu tô morreno aqui e tu fica parada como uma mula!

Dona Darcy juntou seus pertences, pegou a bolsa que estava na mesa da sala, jogou tudo dentro e seguiu para o Posto de Saúde.

Assim que ouviu a porta da casa bater e estremecer toda a estrutura do forte de pau a pique, Tonho pegou uma caneta e a folha que estavam em cima do criado mudo, e começou a escrever um bilhete de despedida, pois sentia que não iria aguentar pelo retorno esperançoso da esposa com um médico a tira colo.

"Darcy,

Seu que nunca falei procê coisas boas, e acho que tá na hora, concorda?

Sei que vai me odiá por isso, mas faze o que, foi isso que restou e vai tê que convivê.

Minha flor, me perdoa. Perdoa pelos erros, pelos xingos, pelos gritos. Perdoa eu por tudo.

Sempre quis te fazê feliz, 'mais' parece que não consegui, né minha flor?

Antes de partir dessa aqui pra outra, vou dizê uma coisa que não te digo tem tempos: Eu te amo mulhé! Como jamais amei alguém em toda minha vida. E ocê me fez muito contente.

Deu pra mim o Altino, que agora, vai fazer compania procê. Dá um beijo nele por mim. E fala que ele vai ter de ser forte agora.

Darcy, minha flor.

Beijo.

Tonho."

Dito e feito. A caneta ainda fez um traço sinuoso no papel antes de cair da mão falecida de Tonho.

Tudo pareceu premeditado. Foi como se Tonho soubesse a exata hora de sua morte, e tivesse escondido estes últimos momentos de forças para dizer doces palavras à dona Dacy.

De tudo o que passou em sua vida, picadas de cobra, animais selvagens rondando sua casa, brigas de faca e pau, até um tiro seu Tonho levou quando era mais jovem ao tentar roubar umas frutas no pé de manga do Coronel Felício, ele nunca imaginou, em momento algum, que iria sucumbir a mais reles das doenças.

E tudo que ele necessitava era de um comprimido, 3 vezes ao dias, para pôr-se de pé novamente.

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